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sábado, 20 de agosto de 2011

Mídia, ciência e tecnologia sob uma visão antropológica

Seminário Ciências da Vida: Antropologia da Ciência em Perspectiva, realizado no Ilea, da UFRGS | Ramiro Furquim/Sul21


Cláudia Rodrigues
Especial para o Sul21

Durante as décadas de 1960 e 1970, os antropólogos estiveram muito ativos politicamente. A partir dos anos 1980, salvo exceções, desapareceram do cenário. Ingenuidade nossa julgar que estivessem muito ocupados com as comunidades quilombolas, ribeirinhas, com os índios, com nativos de países orientais ou vivendo para sempre em alguma ilha exótica perdida no Pacífico. Foi a partir da década de 1980 que esses cientistas sociais começaram a voltar seu olhar e suas práticas de pesquisa para os seus iguais na sociedade ocidental urbana. Eles estavam bem aqui, perto de nós, construindo e desconstruindo as crenças ocidentais urbanas, os nossos comportamentos diante da ciência e da tecnologia. Nos últimos anos, parte importante dos antropólogos esteve avaliando os comportamentos das pessoas em tribunais, delegacias de polícia, bancos de dados genéticos, hospitais; enfim, nosso mundo mais próximo. O processo, que começou na Europa, encontrou pares em vários países do ocidente e deu origem a uma nova disciplina: a Antropologia da Ciência. Em um seminário de dois dias e meio na UFRGS – Ciências da Vida: Antropologia da Ciência em Perspectiva – , professores pesquisadores do Brasil, Portugal, França, Inglaterra e Estados Unidos, dividiram suas teses com um público bastante interessado nesse novo caminho. O professor Guilherme Sá, atualmente na UnB, conta que um grupo de discussão virtual criado por ele e cinco estudantes da pós-graduação em 2005, o REACT, Rede de Antropologia da Ciência e Tecnologia, hoje está com mais de 100 pessoas. Um primeiro congresso no Rio de Janeiro, em 2007, reuniu 30 pessoas; em 2009, um segundo, em Minas Gerais, teve a participação de 120 pessoas. O nome da disciplina, Antropologia da Ciência, não é uma unanimidade, há questões sobre se uma nova espécie de “facção” na área seria adequada, mas diante do diferencial que traz de volta uma possibilidade de comunicação maior com a sociedade, parece não deixar dúvidas de que, afinal, não se pode conter os movimentos sociais espontâneos que acabam sendo determinantes, dentro ou fora da antropologia. Segundo o professor Sérgio Carrara, da UERJ, que entrou espontaneamente na área ao pesquisar relações entre discursos médicos sobre o HIV, saberes jurídicos e psiquiatria forense, ainda na década de 1980, “a importância da Antropologia da Ciência é a busca por intervenções eficazes, não só de hipóteses”.

“Eu estava lá pesquisando as relações dentro do tribunal sobre as questões da paternidade, quando no meio da pesquisa surgiu o teste de DNA e aquilo mudou tudo, foi uma reviravolta" | Ramiro Furquim/Sul21

A professora Cláudia Fonseca, da UFRGS, uma das organizadoras do evento, narra sua entrada, também espontânea, também na década de 1980. “Eu estava lá pesquisando as relações dentro do tribunal sobre as questões da paternidade, quando no meio da pesquisa surgiu o teste de DNA e aquilo mudou tudo, foi uma reviravolta. O teste de DNA estava acima de tudo e de todos, não havia mais a discussão anterior, era uma nova discussão que surgia, novas relações, novos comportamentos diante do mesmo problema”.

A cerebralização da saúde

"Existe uma retórica de que somos o que podemos ser" |Ramiro Furquim/Sul21

Rogério Azize, professor da UFRJ, trouxe o tema de sua tese de doutorado: A Nova Ordem Cerebral — a concepção de ‘pessoa’ na difusão neurocientífica. Segundo ele, existe um certo ufanismo neurocientífico na mídia. “A descoberta das sinapses e de suas funções lembra a descoberta do átomo”. O vocabulário, já popularizado, de palavras como neurônio e serotonina entra facilmente numa espécie de mundo esotérico da neurociência em que o cérebro muda o discurso de quem somos. “Existe uma retórica de que somos o que podemos ser e de que os conhecimentos da neurociência podem ser usados por nós mesmos em nosso próprio benefício quando o cérebro passa a ser um órgão superior ao corpo, um órgão que podemos higienizar na busca da felicidade pessoal”. O cérebro como caixa-preta do nosso corpo teria todas as respostas para nossos comportamentos e aí entra a mídia e suas divulgações “científicas” que, na tradução para o público, banaliza saberes que se transformam em intervenções a serviço do mercado.

Homem com T, de testosterona

"Somente na virada do ano 2000 houve uma explosão de artigos da urologia e da andrologia” | Ramiro Furquim/Sul21

A professora Fabíola Rohden, da UFRGS — coordenadora do projeto Diferenças de Gênero na Recente Medicalização do Envelhecimento e Sexualidade: a Criação das Categorias Menopausa, Andropausa e Disfunção Sexual –, debruçou-se sobre a interferência da mídia em clara conivência com a indústria farmacêutica. “O climatério masculino aparece como doença na década de 1930, mas na década de 1940 a reconstrução da sexualidade não era bem-vinda, somente na virada do ano 2000 houve uma explosão de artigos da urologia e da andrologia” A impotência desaparece da semântica e surge um novo nome para a “doença”, mais palatável para a indústria: “disfunção sexual”, o qual se popularizou com o lançamento do viagra. Quebrada a patente, o viagra já não faz tanto sucesso e a onda agora é o Nebido, droga à base de testosterona. Em 2005, a revista Veja lançou um especial: Homem, Guia de Orientação para Saúde e Sexualidade; na mesma época, os congressos para médicos, ricamente patrocinados pela indústria farmacêutica, começavam a se reproduzir. Os materiais empíricos coletados pelas pesquisadoras foram folhetos em congressos de medicina. O X Congresso de Medicina Sexual, realizado em 2005 no Costão do Santinho, em Florianópolis, foi inundado por folhetos distribuídos pelos patrocinadores do evento: Bayer, Shering Pharma, Eli Lilly do Brasil Ltda, apresentados como Gold Sponsor e Bronze Sponsor. Na área dos expositores, oito ao total, dois apresentavam próteses penianas.

Pesquisas patrocinadas por laboratórios afirmam que 88% dos homens com deficiência de testosterona têm um risco maior de morrer e os questionários, veiculados em revistas, para que o homem descubra qual é seu grau de queda de testoterona e a partir daí procure seu urologista, apresentam questões como: “Você tem a sensação que já foi passado o ponto máximo de sua vida?”

A mulher limpinha

"A mídia agiu mais uma vez como o grande difusor do melhor método" | Ramiro Furquim/Sul21

Daniela Manica, atualmente na UFRJ, falou sobre sua tese de doutorado, defendida na UNICAMP: Contracepção, Natureza e Cultura: Embates e Sentidos na Etnografia de uma Trajetória.

Usando como fio condutor a vida profissional do médico Elsimar Coutinho, ela recuperou a trajetória brasileira na área da obstetrícia, que defende a interrupção da menstruação por uso ininterrupto de tratamento hormonal.

A mídia agiu mais uma vez como o grande difusor do método como o melhor, o ideal e inquestionável contraceptivo, não apenas ignorando a forma como os hormônios artificiais atuam no corpo humano e os estudos sobre efeitos colaterais, mas dando ênfase aos efeitos técnicos de uma maneira bastante linear. O foco é apenas no objetivo, na escolha de não correr riscos de engravidar, com a “vantagem” de não menstruar.

Trajetória de uma ciência que virou crença

“As mulheres sempre tiveram medo de ter bebês com problemas e o mercado aproveitou-se disso" | Ramiro Furquim/Sul21

A professora Ilana Löwy, do Centre de Recherche Medicine, de Paris, falou sobre o gerenciamento do corpo das mulheres grávidas, que começou com a patologização da mulher grávida e hoje se estende ao feto, com uma quantidade exarcebada de exames utilizados como políticas públicas de saúde em muitos países, sem que sejam realmente necessários ou úteis de alguma forma. Na Europa, após nascimentos de bebês com malformações devido ao uso do medicamento talidomida por grávidas, houve um despertar feminino para a possibilidade do aborto. Este, efetuado na maioria dos países ocidentais, trouxe um novo olhar médico e técnico que visava “garantir” às mulheres que seus bebês seriam saudáveis. Hoje, a busca pelo bebê saudável virou o bebê ideal. Dos anos 1960 aos anos 1990 foi um salto em busca da garantia do bebê ideal. As promessas da genética fizeram com que o fator de risco deixasse de ser preocupação. A amniocentese, que surgiu na década de 1980, inicialmente para identificação da Síndrome de Down, logo num segundo momento, em função do mercado, na França deixou de ser útil, já que estava atingindo um público de mulheres mais velhas e ricas, mas os bebês com a síndrome estavam nascendo de mulheres jovens porque elas engravidavam mais. “As mulheres sempre tiveram medo de ter bebês com problemas e o mercado aproveitou-se disso”, afirma Löwy. Hoje os testes genéticos na França, segundo Löwy, detectam apenas 2% de malformações”. A indústria não leva em conta os dados estatísticos para fazer os exames e as mulheres, pelo medo atávico de um bebê com problema, se submetem a testes invasivos com custos emocionais já mapeados, mas pouco divulgados.

Câncer de mama

E assim ocorre com o câncer de mama. Em nome de pesquisas ainda incipientes, que identificaram o gene BRCA 1 e 2 como causa genética para o câncer de mama, mulheres inglesas estão extirpando os seios como forma de prevenção, com anuência dos médicos. Mas o fato da pessoa ter o gene, não significa absolutamente que ela vai desenvolver o câncer. Este foi o tema da palestrante Sahra Gibbon, que atualmente pesquisa mulheres com o gene BRCA 1 e 2, em Porto Alegre. “Estamos ainda em estudo para examinar como e com que consequências os campos da medicina genômica são traduzidos”, afirma.

Bebês, a imagem sem imagem

“Inicialmente a idéia era mostrar a construção do feto como pessoa, mas o que apareceu foi o prazer de ver o feto.” | Ramiro Furquim/Sul21

A médica e psicanalista Lilian Chazan compartilhou impressões vividas durante uma pesquisa de mestrado sobre verdades médicas e não-médicas. “Inicialmente a idéia era mostrar a construção do feto como pessoa, mas o que apareceu foi o prazer de ver o feto.” Durante o período de observação, estabeleceu-se como critério avaliar os espaços, a rotina, o cotidiano e o tempo. Num hospital público, no setor de ultrassom, havia uma secretária que recebia os resultados dos exames. Estes eram “cantados” pelos médicos, já que a máquina de ultrassom não contava com tinta e papel na impressora. As imagens não eram gravadas ou arquivadas de alguma forma. Havia diariamente um entra e sai de médicos e residentes na sala onde as mulheres estavam recebendo seus dez minutos de monitoramento. Nesse ambiente, eles discutiam assuntos variados como listas de casamentos, regras para obtenção de passaportes, até discussão de casos clínicos. A importância da relação médico-paciente era afirmada pela maioria, mas na prática a gestante era secundária, não era chamada pelo nome e não a ouviam. A secretária se esforçava muito para atender as diversas demandas pacientemente. Um dia, diante de um erro de interpretação, assumiu-se como absoluta culpada e disse: “A culpa é minha, preciso arranjar um jeito de instalar um tipo de motorzinho para funcionar melhor.”

Adoção e inseminação, eis a questão

Martha Ramirez, professora da UEL, trouxe a tecnociência como produtora de respostas ao mundo contemporâneo. No mercado, o filho biológico está no mercado acima do filho adotivo. Ela conta que quando iniciou o estudo, o cadastro de adoção de São Paulo não estava funcionando e por isso procurou em comunidades do Orkut grupos de discussão sobre adoção. Encontrou mais de 1000 grupos sobre o assunto e nesses grupos discutia-se também a reprodução assistida. A maior parte das mulheres havia partido para adoção como segunda opção. O argumento comum é que os pais têm o direito à liberdade de ter um filho próprio no lugar de um filho de outros, o que faz com que o plano para adquirir o filho próprio seja semelhante ao de adquirir a casa própria. Na prática, faltam políticas públicas que coloquem as duas possibilidades como reais. O que está ocorrendo é uma espécie de ritual de passagem pela reprodução assistida antes da adoção ser procurada.

Pesquisas revisadas

Marko Monteiro, da Unicamp, descortinou variáveis que não foram levadas em consideração em pesquisas genéticas. “Pesquisas afirmam que não existem raças, mas crescem em número pesquisas com foco na raça”, diz Monteiro. A lógica atual para o câncer de próstata é que, se entendermos melhor o DNA, seria possível direcionar melhor a terapia. “Foi constatado que negros norteamericanos têm uma incidência maior de câncer de próstata em relação aos homens norteamericanos brancos, mas haveria de considerar que os negros norteamericanos têm uma vida muito distinta da dos brancos norteamericanos. Têm menor acesso a serviços de saúde, segurança, além de hábitos bem diferentes. As disparidades aumentam diante do questionamento de dados. “A ciência não é só científica, a ciência também é política, social e econômica,” diz Monteiro.

A caminho do crime perfeito

Em entrevistas nos presídios de Portugal, onde o programa de televisão CSI é um sucesso entre os prisioneiros, Helena Machado, da Universidade do Minho, em Portugal, colheu depoimentos como: “A gente tem que ficar esperto, agora não é mais só usar uma luva, qualquer gotinha de sangue ou fio de cabelo pode atrapalhar tudo”. A divulgação banalizada das práticas de cientistas forenses chega ao público sedutoramente misturando sexo, crime e romance. O geneticismo no mundo do crime tem uma falha grave: a implantação de provas na cena do crime, que pode ser intencional ou acidental podem levar a erros graves de julgamento.

Localizado o fio condutor dos protestos globais

A professora Ondina Fachel, da UFRGS, brindou a plateia com o primeiro capítulo de um livro recém-lançado sobre estudos a respeito do regime de propriedade intelectual.

O termo propriedade intelectual está diretamente ligado ao regime jurídico global. No período do pós-guerra, houve uma reorganização global que trouxe para nosso convívio uma necessidade de acumulação de capital, investimentos maciços em tecnologia e o surgimento das multinacionais. Nasceu uma nova gestão do sistema econômico, foram fundados o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional. Os desdobramentos não pararam mais: surgiu o GATT, sigla em inglês para o Acordo Geral de Tarifas e Comércio, e por consequência a hegemonia dos Estados Unidos no comércio internacional. Na década de 1980, para validar e ampliar essa força, houve a criação da Organização Mundial do Comércio e o acordo do TRIPS, um acordo multilateral que legitimou e intensificou as formatações de propriedade sobre recursos na área do conhecimento, que vai desde símbolos, procedimentos, passando modos de vida, ideias. O TRIPS parece invisível, mas age na contramão da natureza pública, cercando e privatizando a produção cultural, científica e tecnológica. A OMC tem poder de retaliação comercial em escala mundial e nos impõe uma realidade de mercantilização da vida sem levar em conta as características de desenvolvimento de cada país. Atua diretamente em tudo aquilo que chamamos cultura, incluindo a cultura tecnológica, como as questões relacionadas ao software livre e aberto, bem como patentes.

Com os avanços tecnológicos no campo médico e farmacêutico, houve a expansão da proteção patentária para a aquisição de remédios pelo TRIPS, o agente impedidor de acesso à medicação nos países em desenvolvimento.

O atual regime de propriedade intelectual global tem seu calcanhar de Aquiles. Ele também não é adequado aos países desenvolvidos. Lá como cá, os direitos das pessoas estão sendo massacrados. Morando em país rico ou pobre, as pessoas não querem mais comer o agrotóxico. Lá como cá, queremos saber o valor exato da tecnologia, sem os descontos extras de procedimentos e pesquisas encomendadas por laboratórios. Lá como cá, anseiam os seres humanos por finalmente desfrutar dos direitos humanos universais e inalienáveis, que nos prometeram somente no discurso.

Assim, se até ontem a questão era discutir a importância ou a desimportância de líderes ou heróis políticos para os movimentos sociais que saltam pelo mundo, hoje sabemos que temos um fio condutor e um objetivo que é de todos: derrotar a perversão do mercado.

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