Movimentos sociais condenam Estado
por uso indiscriminado da violência
Camila Boehm e Érica Saboya
Entre os dias 4 e 6 de dezembro, o Salão Nobre da Faculdade de Direito do Largo São Francisco foi palco de um evento excepcional em sua história. O espaço que exerceu grande influência no pensamento jurídico brasileiro e assistiu à formulação de teorias que embasaram o Estado burguês, abrigou desta vez um tribunal popular que se propôs justamente a condenar as ações violentas e as imoralidades desse Estado. A imponente arquitetura do lugar, com cortinas de veludo e placas de mármore, ficou ofuscada pelas bandeiras de movimentos sociais e faixas de protesto presas nas paredes. As discussões que ali foram postas nos três dias do evento questionaram as estruturas de um Estado que em nada se parecia com o nobre Estado de Direito defendido por renomados juristas daquela faculdade.
Tribunal Popular: o Estado Brasileiro no Banco dos Réus foi o nome que o projeto recebeu. As mesas de discussão tiveram formato de tribunais que se contrapuseram às comemorações de 2008 pelos 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos e 20 anos da Constituição Cidadã de 1988, que, segundo os organizadores não foram em nada cumpridas. A iniciativa foi inspirada em um tribunal semelhante realizado em Nova Orleans, que julgou a negligência do Estado norte-americano em relação às vítimas do furacão Katrina, em sua maioria pobres e negros. Os organizadores se declaram satisfeitos com os resultados do trabalho, que começou há mais de cinco meses e envolveu centenas de ativistas.
“Esta participação e forma de organização ainda é incipiente, mas é uma novidade suficientemente importante que questiona e tenciona a legalidade e a legitimidade do Estado Democrático de Direito que temos”, afirmou Heder Souza, membro da comissão de organização paulista.
Na Bahia, em São Paulo
O evento foi dividido em quatro sessões de instrução e o julgamento final. Na quinta-feira, a primeira sessão teve como tema a violência do Estado em comunidades urbanas pobres, com ênfase no caso do dia 27 de junho de 2007, no Rio de Janeiro, quando 1.300 policiais e soldados da Força Nacional cercaram o Complexo do Alemão, matando 19 pessoas e deixando feridos, numa ação planejada pela Secretaria de Segurança Pública do Rio. A segunda tratou da violência contra jovens pobres e negos e da situação subumana do sistema carcerário na Bahia. O assunto de destaque foi a Colônia Penal modelo da cidade de Simões Filho, na região metropolitana da Bahia, construída em meio à área remanescente quilombola, ferindo assim o direito brasileiro de preservação a comunidades residentes nesse local.
No dia seguinte, a terceira sessão abordou a violência na Grande São Paulo, evidenciando as execuções e crimes ocorridos de 16 a 20 de maio em 2006. Nesse período, foram calculados pelo Cremesp 493 assassinatos, dos quais 47 atribuídos ao PCC (crime organizado) e o restante a policiais pertencentes a grupos de extermínio. O cenário inclui vítimas que sequer tinham passagem pela polícia, tiros à queima-roupa e pelas costas, 28 enterrados sem identificação e quatro jovens detidos em operações policias que ainda estão desaparecidos. Apesar das muitas testemunhas e abundante documentação, tais crimes não foram apurados e continuam impunes. Muitas investigações foram feitas pelos próprios familiares sem o apoio e aparato do Estado. Já a última sessão de instrução tratou da violência estatal contra os movimentos sociais e a criminalização da luta sindical. Os vídeos apresentados denunciaram a negligência e desrespeito do Estado em relação às lutas por terra e meio ambiente.
As opiniões do público foram muito positivas em relação à importância do evento. O jurista e presidente da segunda sessão, Maurício Brasil, encarou como um elemento importante de integração entre manifestantes.
“O Tribunal é uma iniciativa importantíssima, pois resgata a mobilização coletiva. Ele está incentivando pessoas para a luta e dando visibilidade para os que estão nela. E o Largo São Francisco tem uma simbologia real.”
Mas houve também quem questionasse a efetividade das mesas de discussão, já que o tribunal apontou focos de crítica, mas não trouxe soluções efetivas:
“Ele não coloca o Estado realmente no banco dos réus, não dá nenhuma pena. O Tribunal Popular não tem força para decidir, tem uma cara muito mais política do que de justiça. A iniciativa é boa, mas queremos resultados”, afirmou o presidente da associação cultural afro-brasileira, Waldir M. dos Santos.
A sessão final aconteceu no sábado, dia 6, de manhã, e contou com a participação de lideranças do movimento social, intelectuais da esquerda, juristas e artistas como o ex-integrante do grupo Rappa, Marcelo Yuka. O acusador foi Plínio de Arruda Sampaio, que emocionou a platéia com a exposição da criminalização da pobreza pelo o Estado e o pedido de pena máxima à instituição.
“A aplicação de reformas seria um remendo à situação que nos encontramos, mas não há remendo possível. Quero a substituição do Estado burguês pelo Estado socialista.”
Mas não menos significativo foi o discurso do advogado de defesa, que deu o contraponto discussão:
“Precisamos consertar falhas pontuais do nosso sistema. Jamais teremos uma sociedade de anjos, sempre haverá conflitos.”
Essa última mesa sintetizou ainda as discussões das outras quatro sessões e abriu espaço para os depoimentos de mais familiares de vítimas. O júri foi composto por intelectuais como Ivan Seixas, Paulo Arantes, Maria Rita Kehl e José Arbex Jr., cada um com direito à fala. O salão, acostumado à serenidade das sessões oficiais de julgamento, se encheu de gritos acalorados e palavras de ordem das cerca de quatrocentas pessoas presentes. O Estado estava condenado.
Atividades paralelas
Nos intervalos entre as sessões, aconteceram outras manifestações e atividades culturais. Na quinta-feira, uma vigília reuniu manifestantes levando velas e imagens, que caminharam até o Tribunal de Justiça em homenagem às vítimas do Estado brasileiro desde a Ditadura Militar. A Rede de Comunidades e Movimentos Contra a Violência do Rio de Janeiro organizou uma oficina de escrache, forma de manifestação popular que visa denunciar violadores dos Direitos Humanos. Foram lançados ainda dois livros entre as sessões: Criminalização do Protesto e dos Movimentos Sociais, de Kathrin Buhl e Claudia Korol, e o Relatório Anual da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos. Este último, organizado por Evanize Sydow e Maria Luisa Mendonça, destaca a violência no campo e a política agrária do atual governo ao privilegiar a expansão do agronegócio.
Marcelo Yuka defendeu que o evento poderia ter abordado também o papel da sociedade na criminalização do setor mais pobre. Ele acredita que há certa conivência da classe média alta com a ação violenta da polícia.
“Eles confundem justiça com vingança e o crime acaba por repetir a fórmula de quem o castiga”, concluiu Yuka.
Já Plínio de Arruda Sampaio ficou feliz com a realização de um evento desse tipo, mas lamentou o fato de estarem dentro de uma das maiores faculdades de direito do país e pouquíssimos estudantes estarem participando.
“Na sala ao lado tem estudantes reunidos para aprender técnicas, mas o advogado não deve ser um técnico e sim um homem voltado para a luta pelos direitos.”
Os debates do Tribunal mostraram que a velha Academia de Direito parece ter relegado sua missão de formar homens públicos capacitados “para defender e preservar o Estado de Direito em desenvolvimento no país”. Com que direito?
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