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quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

O Manifesto do Partido Comunista


Trabalhadores de todo o mundo, unam-se!


O Manifesto do Partido Comunista é, certamente, o texto mais conhecido e lido de Marx e Engels. Escrito em final de 1847 e publicado sem assinatura no início de 1848, ele foi provavelmente redigido apenas por Marx, que se utilizou para isso de um esboço preliminar elaborado por Engels, intitulado Princípios do comunismo. O texto lhes fora encomendado pela Liga dos Comunistas (antes chamada de Liga dos Justos), na qual militavam, um pequeno agrupamento de exilados alemães com sede em Londres. Quando Marx e Engels morreram, respectivamente em 1883 e em 1895, o Manifesto não só conhecera inúmeras edições em alemão (a língua em que fora escrito), mas também já havia sido traduzido em vários outros idiomas; essas reedições e traduções quase sempre traziam novos prefácios dos autores (sobretudo de Engels, que viveu 12 anos mais do que Marx), em muitos dos quais — particularmente nos mais tardios — já se esboçavam autocríticas quanto a algumas das afirmações do texto originário. No momento em que o Manifesto foi escrito, Marx e Engels já tinham elaborado as linhas essenciais de sua ontologia do ser social (à qual deram o nome de “materialismo histórico”), cujas primeiras expressões sistemáticas se encontram em A ideologia alemã e nas Teses sobre Feuerbach (de 1845), bem como na Miséria da filosofia (de 1847). Em relação a esses textos fundadores, o Manifesto introduz, porém, uma significativa novidade: é nele que, pela primeira vez, Marx e Engels expressam de modo sistemático os fundamentos essenciais de sua teoria política, ou, mais precisamente, da teoria histórico-materialista do Estado e da revolução. Quem leu o Manifesto sabe que não é correto dizer — como, entre outros, Norberto Bobbio o fez nos anos 70 — que não existe em Marx uma teoria política. 1. A extraordinária eficácia do Manifesto — um dos textos teórico-políticos certamente mais influentes em toda a história — resulta, para além dos seus inegáveis méritos literários, da justeza essencial das grandes linhas que traça para explicar o impacto que a emergência e a consolidação do capitalismo provocaram na evolução da humanidade. O que hoje conhecemos como “modernidade” tem suas principais determinações registradas nos dois primeiros capítulos do Manifesto, sugestivamente intitulados “Burgueses e proletários” e “Proletários e comunistas”. Todos os traços que, pelo menos desde os iluministas, vinham sendo apontados como distintivos da era moderna (em contraposição à Antiguidade clássica e ao mundo feudal) encontram no Manifesto uma exemplar síntese histórico-dialética, síntese à qual nem mesmo os mais ferrenhos adversários do marxismo têm recusado — quando dispõem de um mínimo de isenção — o qualificativo de “genial”. Surpreende no texto do Manifesto, escrito há 150 anos, a atualidade com que, por exemplo, seus autores descrevem as grandes linhas do modo de produção e da formação econômico-social capitalistas, sob cujo domínio continuamos a viver ainda hoje. Embora sejam críticos radicais do capitalismo, Marx e Engels não são românticos: têm clara consciência não só da irreversibilidade, mas também do caráter liberador e revolucionário das novas formas de sociabilidade que o capitalismo vinha introduzindo — e, de certo modo, continuou a introduzir — no modo de relacionamento e de interação entre os homens. Um famoso livro do crítico norte-americano Marshall Berman tornou ainda mais conhecida a expressão “tudo que é sólido desmancha no ar”1, com a qual o Manifesto busca resumir o sentido das transformações que o capitalismo introduzia no mundo, gerando — com sua carga fortemente emancipatória, mas também com seus trágicos impasses — o que hoje conhecemos como “modernidade”. Entre as novidades trazidas pelo capitalismo, e não em último lugar, Marx e Engels registram o fenômeno que hoje recebe o nome de “globalização”:
“No lugar da tradicional auto-suficiência e do isolamento das nações, surge uma circulação universal, uma interdependência geral entre os países. E isso tanto na produção material quanto intelectual. Os produtos intelectuais das nações passam a ser domínio geral. As criações intelectuais de uma nação tornam-se propriedade comum de todas. A estreiteza e o isolamento nacionais tornam-se cada vez mais impossíveis; e das muitas literaturas nacionais e locais nasce uma literatura mundial”2. É dessa globalização do capital que Marx e Engels retiram a justa percepção de que os opositores do capitalismo – os trabalhadores – devem também se organizar em nível internacional. Ao mesmo tempo em que descreve premonitoriamente características que o capitalismo só viria a manifestar plenamente nos dias de hoje, o Manifesto também é atualíssimo ao apontar as contradições que essa formação econômico-social (e cultural) traz consigo:
"As relações burguesas se tornaram estreitas demais para conter toda a riqueza por elas produzida. Como consegue a burguesia superar as crises? Por um lado, pela destruição forçada de grande quantidade de forças produtivas; por outro, através da conquista de novos mercados e da exploração mais intensa dos mercados antigos. Através de quê, portanto? Da preparação de crises mais gerais e violentas e da limitação dos meios que contribuem para evitá-las". O diagnóstico é, também ele, atualíssimo: “As armas com as quais a burguesia abateu o feudalismo se voltam agora contra ela mesma”. Ou seja: as promessas de emancipação humana trazidas pela modernidade capitalista (entre as quais as promessas de democratização e de universalização da cidadania) exigem, para sua plena realização, a superação do próprio capitalismo.E o Manifesto é também de grande atualidade quando indica os sujeitos capazes de encaminhar essa superação:
“Mas a burguesia não forjou apenas as armas que a levarão à morte; produziu também os homens que usarão essas armas: os trabalhadores modernos, os proletários". É no mundo do trabalho, no mundo dos que geram as riquezas que o capital expropria, que se gestam as principais forças objetiva e subjetivamente interessadas na construção de uma nova ordem social, que Marx e Engels concebem como capaz de recolher os momentos emancipatórios trazidos pela modernidade capitalista mas, ao mesmo tempo, de superar suas contradições e impasses. Escrevendo em 1848, nossos dois autores não podiam prever a grande diversificação que iria envolver, nos 150 anos subseqüentes, o universo dos que vivem do próprio trabalho e, por conseguinte, dos que geram mais-valia para o capital. Por isso, ainda identificavam sumariamente os trabalhadores modernos com a classe operária fabril, uma identificação que já não se sustenta hoje. Contudo, ao mostrar que é no mundo dos que trabalham – e que são por isso explorados – que se gesta o portador material da superação do capitalismo, o Manifesto demonstra mais uma vez a sua atualidade, a sua sintonia com o presente. 2. Malgrado isso, é preciso dizer claramente que quem quer ser marxista hoje não pode repetir mecanicamente o que é dito no Manifesto. Lukács já observava, em 1923, que a ortodoxia marxista se refere exclusivamente ao método, o que implica, segundo ele, a possibilidade (ou mesmo a necessidade) de se deixar de lado, ou mesmo de recusar, muitas das afirmações concretas de Marx e Engels3. Essa relativização nos sugere que, ao lado de sua extraordinária grandeza e de sua surpreendente atualidade, o Manifesto também apresenta limites. Tais limites decorrem, antes de mais nada, do fato de que Marx e Engels adotaram metodologicamente, nesse texto, um ponto de vista abstrato: eles se concentraram nos traços mais gerais do modo de produção capitalista, sem analisar suas manifestações concretas em diferentes formações econômico-sociais. Tal ponto de vista, ao mesmo tempo em que lhes permitiu a captação das determinações essenciais do capitalismo, possibilitou-lhes ainda emprestar ao Manifesto aquela dimensão epocal que faz a sua grandeza e que talvez seja a razão maior de sua permanente eficácia. Mas também os impediu de levar em conta mediações concretas que tornariam mais ricas, como ocorre em textos posteriores, as suas análises. (Nesse sentido, bastaria comparar o relativo esquematismo da definição do Estado no Manifesto com a riqueza concreta da análise do fenômeno político no 18 Brumário, escrito por Marx apenas quatro anos depois.) Contudo, os limites da obra clássica de 1848 são, sobretudo, limites históricos: escrevendo em 1848, Marx e Engels não podiam elevar a conceito inúmeras determinações que o desenvolvimento histórico sucessivo introduziria no ser social, alterando assim os termos com que eles definem, no Manifesto, alguns complexos problemáticos tão significativos — para a teoria política que fundaram — como a luta de classes, o Estado e a revolução. Depois de afirmarem que “a época da burguesia [...] simplificou os antagonismos de classe” (uma afirmação que é relativizada no 18 Brumário e em outros textos posteriores), Marx e Engels afirmam:
“O poder do Estado moderno não passa de um comitê que administra os negócios comuns da classe burguesa como um todo. [...] O poder político propriamente dito é o poder organizado de uma classe para dominar outra”4. Essa idéia de que o poder do Estado capitalista se impõe essencialmente pela coerção, ou pela “opressão”, resulta da constatação de que a sociedade burguesa, ao contrário das anteriores sociedades de classe, é incapaz de “dominar porque é incapaz de garantir a existência do seu escravo”, isto é, do trabalhador assalariado. A lei do movimento do capital, segundo os autores do Manifesto, conduziria o proletariado ao empobrecimento absoluto. Isso, ao mesmo tempo em que imporia ao Estado burguês a necessidade de uma coerção permamente sobre os trabalhadores, levaria a luta de classes a assumir a forma da guerra civil:
“Ao delinear as fases mais gerais do desenvolvimento do proletariado — diz ainda o Manifesto —, descrevemos a história da guerra civil mais ou menos oculta que se trava no interior da sociedade atual, até o ponto em que ela explode em revolução aberta e o proletariado funda seu domínio através da derrubada violenta da burguesia”5. Expressa-se assim, no Manifesto, uma teoria política centrada essencialmente em três pontos: 1) numa noção “restrita” do Estado, segundo a qual esse seria o “comitê executivo” da classe dominante, que se vale essencialmente da coerção (ou da “dominação”) para cumprir suas funções; 2) numa concepção da luta de classes como conflito bipolar e “simplificado” entre burgueses e proletários, que se expressa como “uma guerra civil mais ou menos oculta”, que levará necessariamente a uma “explosão”; 3) numa visão da revolução socialista como “revolução permanente”, que tem seu momento resolutivo na constituição de um contrapoder da classe operária, que deve “derrubar violentamente” o poder burguês e substituí-lo por um outro poder (que, pouco tempo depois do Manifesto, Marx chamará – recolhendo um termo de Auguste Blanqui -- de “ditadura do proletariado”).Um marxista que compreenda a “ortodoxia” não como uma reverência fetichista aos textos, mas como o empenho em ser metodologicamente fiel ao movimento histórico-dinâmico do real, não pode repetir essas definições como sendo plenamente válidas hoje. Novos fenômenos surgiram, sobretudo a partir do último terço do século XIX, que — ao introduzir novas determinações no ser social do capitalismo — tornaram obsoletas muitas características presentes em tais definições. Por um lado, a progressiva passagem da exploração do trabalho através da mais-valia absoluta (redução do salário e aumento da jornada de trabalho) para a exploração através da mais-valia relativa (aumento da produtividade) — uma passagem que Marx teoriza amplamente no Livro 1 de O Capital, publicado em 18676 — alterou as condições em que se trava a luta de classes: ela não mais ocorre num quadro em que a acumulação do capital leva necessariamente ao empobrecimento absoluto do trabalhador, mas torna possível um aumento simultâneo de salários e lucros; com isso, a luta de classes pode assumir formas outras que não a da “guerra civil”. E, por outro lado, em estreita correlação com essa passagem, a crescente “socialização da política” (conquista do sufrágio universal, criação de sindicatos e partidos operários de massa) forçou o Estado capitalista a se abrir para outros interesses que não apenas os da classe dominante, com o que — sem deixar de ser um Estado de classe — ele não mais pode ser definido como um mero “comitê executivo” da burguesia. Tudo isso, finalmente, motivou uma nova concepção da revolução socialista: essa pode agora ser imaginada como um movimento processual, que opera nos espaços abertos pelas instituições liberal-democráticas (resultantes, em grande parte, das lutas dos trabalhadores), e não mais, como ainda supunha o Manifesto, sob a forma de uma “explosão violenta” concentrada num curto lapso de tempo.3. Embora indicações no sentido de revisar a teoria para adequá-la a esse novo contexto histórico já estejam presentes nos próprios Marx e Engels depois do Manifesto (como se pode ver, entre outros escritos, nos prefácios mais tardios de ambos às reedições e traduções do texto de 1848, mas sobretudo na introdução que Engels escreveu em 1895 para uma nova edição de As lutas de classe na França7), o fato é que uma nova teoria marxista do Estado e da revolução só viria à luz, de modo sistemático, nos célebres Cadernos do cárcere de Antonio Gramsci, escritos entre 1929 e 1935. Com base numa correta visão historicista do método de Marx, Gramsci percebeu a essência da limitação histórica do seu mestre (e, em conseqüência, do Manifesto). Assim, numa nota em que fala da teoria do Estado em Hegel, diz Gramsci:
“Sua concepção [de Hegel] da associação só pode ser ainda vaga e primitiva, situada entre o político e o econômico, de acordo com a experiência da época, que era ainda restrita e fornecia um único exemplo completo de organização, a organização ‘corporativa’ [...]. Marx não podia ter experiências históricas superiores às de Hegel (pelo menos muito superiores), mas tinha o sentido das massas, graças à sua atividade jornalística e de agitação. O conceito de organização em Marx permanece ainda preso aos seguintes elementos: organizações profissionais, clubes jacobinos, conspirações secretas de pequenos grupos [como a Liga dos Comunistas], organização jornalística”8.
Ao mesmo tempo em que indica aqui os limites históricos de Marx e Engels, Gramsci recolhe o essencial da lição deles: o autor dos Cadernos não abandona as teorias de Estado e revolução socialista elaboradas por Marx e Engels, inclusive no Manifesto, mas as enriquece com novas determinações, recolhidas do movimento histórico que ele teve a possibilidade de vivenciar. A revisão do marxismo empreendida por Gramsci — uma revisão que coloca as idéias de Marx e Engels em sintonia com o nosso tempo — nos ensina uma lição: reler o Manifesto, de um ponto de vista marxista, significa relê-lo de modo crítico, relativizá-lo, situá-lo historicamente. Essa necessária relativização histórica, contudo, não nos deve fazer esquecer que poucos textos resistiram ao tempo tanto quanto o Manifesto do Partido Comunista. É surpreendente sua atualidade, sua capacidade de nos falar — e de nos dar lições — sobre o mundo de hoje. Além do que já mencionamos antes, é extremamente atual, por exemplo, a concepção de comunismo que o Manifesto nos sugere: a de uma organização social na qual “o livre desenvolvimento de cada um é pressuposto para o livre desenvolvimento de todos”. É uma frase densa de significado, que fornece aos marxistas de hoje critérios para avaliar as razões do fracasso do “socialismo real”, para recordar a necessidade de recolher o que de melhor existe na tradição liberal e democrática e, sobretudo, para resgatar a dimensão libertária do comunismo, esse "espectro" que continua sendo — e talvez hoje mais do que nunca — a única alternativa racional e sensata à crescente barbárie capitalista. Notas:1 BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. A aventura da modernidade, São Paulo, Companhia das Letras, 1986. 2 MARX, Karl e ENGELS, F. Manifesto do Partido Comunista, in Vários autores, O Manifesto Comunista 150 anos depois, Rio de Janeiro-São Paulo, Contraponto-Fundação Perseu Abramo, 1998, p. 11-12 também para as citações seguintes. . 3 LUKÁCS, G. História e consciência de classe, São Paulo, Martins Fontes, 2003, p. 64.
4 Marx-Engels, Manifesto, ed. cit., p. 10 e 28. 5 Ibid., p. 19. 6 MARX, Karl. O Capital, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, Livro 1, 1998, p. 359 e ss. 7 ENGELS, F. “Introdução” a Karl Marx, As lutas de classes na França, in Marx-Engels, Obras escolhidas, Rio de Janeiro, Vitória, 1996, vol. 1, p. 104-126. 8 GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, vol. 3, 2000, p. 119.

[COUTINHO, Carlos Nelson. Contra a corrente, São Paulo, Cortez, 2 ª ed., 2008, p. 182-192]
Carlos Nelson Coutinho é um destacado filósofo marxista brasileiro, fundador do PSOL e professor de teoria política da UFRJ.

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